sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O farol baixo de Ananias


O FAROL BAIXO DE ANANIAS

Orlando Silveira

Ananias está naquela fase da vida em que lembranças e questionamentos são, praticamente, inevitáveis. Num dia, orgulha-se de ter dito muitos “nãos”, de nunca – ao menos até onde sua memória alcança – ter aberto mão daquilo que julgava correto, do ponto de vista ético, para obter vantagens econômicas. Noutro dia, baixa o farol e se questiona se não tinha sido apenas besta. Afinal, passou a vida numa pindaíba daquelas, enquanto vários colegas de trabalho enricaram. Em certos momentos, ele tem orgulho de sua trajetória; em outros, vai ao fundo do poço sem fundo da tristeza, acha que sua história não é digna de um saco de lixo.
O fato é que o dilema tardio de Ananias – deveria ter feito isso ou deveria ter feito aquilo? – começou a torrar a paciência zero do Velho Marinheiro, que, a bem da verdade, é o único que se dispõe a ouvi-lo, pela simples razão de que dele gosta. Por quais motivos? Ninguém sabe bem. Há preferências que são quase inexplicáveis.
Naquela tarde fria e garoenta, Ananias ameaçou retomar a cantilena, mas foi interrompido de pronto pelo Velho Marinheiro, em dia de pouco papo:
– Escuta aqui, Ananias. Essa coisa de ficar toda hora remoendo o passado não leva ninguém a lugar algum. Só torra a paciência dos ouvidos alheios. Não dá para voltar no tempo. Eu já lhe disse: o passado mais machuca que ensina. Ora, você agiu de acordo com sua consciência. Fez bem. Mas não há – todo mundo sabe – almoço de graça. Se lhe serve de consolo, vamos lá: os meios qualificam ou desqualificam os fins. Preciso desenhar? Agora, vamos mudar de assunto. Deolinda está chegando. Espero que o decote de hoje seja generoso, como costuma ser. Vamos tomar uns tragos, comer bolinhos de arroz e assuntar bobagens. Ok?

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