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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A mais nova companheira


A MAIS NOVA COMPANHEIRA

Clóvis Campêlo


Conheci-a há alguns anos atrás e, de início, não imaginei o que ela pudesse me propiciar.
Achei apenas que seria mais uma companhia para essa vida da qual eu tenho certeza que já vivi mais da metade.
Essas coisas são assim, simplesmente acontecem, não mandam aviso, não sinalizam, não deixam que nos preparemos para recebê-las.
No entanto, não me fiz de rogado. Aceitei-a, não digo que com o coração completamente desarmado, mas com a serenidade necessária.
A primeira crise, porém, mostrou-me que a nossa convivência não seria necessariamente pacífica. Senti-me atingido e, o que é pior, privado de exercer algumas das coisas das quais mais gosto.
A crise passou e voltamos a conviver, ou melhor, coexistir pacificamente. Tive consciência, porém, de que alguns limites estavam definitivamente estabelecidos. Eu não mais seria o mesmo. Mesmo assim, a coisa não me pareceu tão trágica.
A crise seguinte aconteceria ao retornar de uma viagem a São Luís do Maranhão. Sabia que havia exagerado e extrapolado alguns dos limites durante a viagem. Mas, sabem como é: a gente viaja, fica longe do nosso habitat natural, perde algumas das referências diárias e termina saindo da linha. Não imaginava, porém, que a sua manifestação seria tão violenta. Confesso que assustei-me com o que tive de suportar. A partir daquela data, sabia que teria de tomar mais cuidados. Guardei tudo na memória. Precisava não mais me esquecer. Mas, como todos nós sabemos, a memória é pragmática e utilitária e precisa sempre reciclar os seus arquivos para puder acumular as informações que realmente são necessárias naquele momento vivido. E todo aquele conhecimento acumulado pela experiência do sofrimento saiu de cena. Mesmo assim, dois anos se passaram e nada aconteceu. Eu inocentemente com a guarda aberta e ela calada, quieta, como se nada tivesse a reclamar.
Domingo passado, amigos, inesperadamente para mim, a coisa estorou novamente. Nunca a vi tão violenta, descontrolada, raivosa, vingativa. Temi perder o controle da situação, coisa que nunca havia acontecido antes. Hoje, alguns dias depois, posso dizer que se situação ainda não se normalizou. Arrefeceu, porém. E estamos mais uma vez naquela fase de negociação, procurando estabelecer de maneira conveniente o espaço que cada um pode ocupar em paz. Confesso que desta vez passei a respeitá-la muito mais, tive a percepção exata da sua força. Não quero mais o confronto, juro. Quero viver em paz com ela. Deixo isso bem claro e evidente. Não dá para suportar a dor. Terrível. A partir de hoje, farei tudo o que ela disser. Agora eu sei quem é que dá as ordens. Não sou louco.
Rendo-me, portanto, à artrite gotosa.

Recife, 2009


terça-feira, 13 de setembro de 2016

O café nosso de cada dia


O CAFÉ NOSSO DE CADA DIA

Clóvis Campêlo


Uma das coisas que mais me davam satisfação na vida era passar na casa de dona Carmelita, minha avó materna, para tomar com ela o café da tarde.
A hora do moca, como ela chamava, era imperdível. Sempre tinha na mesa um cuscuz quentinho e o insuperável bolo formigueiro.
Já faz tempo que ela se foi e lembro com carinho e saudade daqueles momentos felizes de encontros familiares.
No seu CD de chorinhos nº 3, feito em homenagem a Francisco Soares, o Canhoto da Paraíba, o compositor pernambucano Inaldo Moreira conta que o conheceu em 1959, na casa de Mestre Sérgio, na Rua das Águas Verdes, no tradicional bairro de São José, no Recife.
Lá, todos os sábados, a partir das 19 horas, os chorões da cidade se reuniam, formando uma roda de choro onde o consumo de álcool era proibido. O que movia os chorões era o café, acompanhado de cuscuz e pão com manteiga. Pense numa coisa mais romântica!
Uma das maiores dificuldades que senti na minha vida, quando nos anos 70 me arrisquei pela alimentação macrobiótica, imitando Gilberto Gil e John Lennon, querendo alcançar o nirvana de qualquer jeito, foi deixar de tomar café.
De manhã cedinho, quando dona Tereza, a minha mãe, passava a água fervendo pelo coador repleto daquele pó negro e maravilhoso, incensando a casa com um cheirinho característico, todas as minhas convicções iam por água abaixo. Não resistia.
Originário da Etiópia, o café foi introduzido no Brasil em 1727. Foi plantado inicialmente na região norte do país. Mas, foi em São Paulo e Minas Gerais que o seu cultivo encontrou um solo com condições mais propícias, gerando uma nova fonte de riqueza para o país e para a região sudeste.
Satisfeito, vejo nos meus compêndios homeopáticos que o café nosso de cada dia, da maneira como é entre nós preparado, coado e sem que o pó seja fervido junto com a água, é mais salutar por diminuir o seu teor de cafeína.
Fico feliz e tranqüilo. Hoje, não saberia mais viver sem ele.

Recife, 2010